Marcos históricos da Educação Inclusiva
A organização da sociedade humana é caracterizada, ao longo da história, por um processo de categorização das pessoas, de acordo com um critério de “normalidade” instituído a partir de uma visão de homem idealizada. Por muitos séculos, pessoas que não se encaixavam nesse padrão foram (e ainda são) fortemente estigmatizadas e impedidas de participar da sociedade com igualdade de condições e direitos.
As pessoas com deficiência foram banidas do convívio social e dos seus direitos como seres humanos, vítimas de ultrajes inomináveis. Foram séculos de perseguições, inquisições, holocaustos e episódios de crimes contra a pessoa humana.
Na idade média, essas pessoas eram vítimas de apedrejamento e morte nas fogueiras da Inquisição. No século XIX e início do século XX eram submetidas à esterilização para evitar a reprodução de “seres imperfeitos”. No Nazismo eram aniquiladas, porque não correspondiam à pureza da raça ariana; na Inglaterra, vítimas da rejeição A, vergonha e medo, eram destinadas ao isolamento, em grande asilos.
No âmbito da educação foram igualmente marcadas pela desigualdade de valor. Somente a partir da metade do século XX surgiram movimentos sociais efetivos contra a discriminação, em busca por justiça social. Nesse período, emergiram fortes críticas em relação aos modelos educacionais segregacionistas e suas práticas de homogeneização, categorização de alunos e seu encaminhamento para escolas especiais.
Os primórdios do ideal inclusivo remontam ao iluminismo, movimento que atingiu seu apogeu no século XVIII, influenciando a Revolução Francesa, com seu lema: Liberdade, igualdade e fraternidade. Para os iluministas, o homem era naturalmente bom, sendo corrompido pela sociedade. Defendiam a ideia de uma sociedade justa, com direitos iguais para todos.
Somente com a Revolução Francesa, pessoas com deficiências passaram a ser foco de assistência em organizações caritativas e religiosas, mas ainda não recebiam educação formal.
A valorização dos direitos humanos ocorre após a Segunda Guerra Mundial, com a emergência dos conceitos de igualdade de oportunidades, direito à diferença, justiça social e solidariedade nas novas concepções jurídico - políticas, filosóficas e sociais de organizações como a ONU - Organização das Nações Unidas, a UNESCO, a OMS - Organização Mundial de Saúde, a OIT - Organização Internacional do Trabalho, entre outras.
As pessoas com deficiência passaram a ser consideradas possuidoras dos mesmos direitos e deveres dos outros cidadãos e, entre eles, do direito à participação na vida social, à integração escolar e profissional. As atenções voltaram-se para a recuperação das vítimas da guerra e seu encaminhamento ao trabalho. Lamentavelmente, essas pessoas foram introduzidas no mercado de trabalho como uma opção de mão de obra barata.
Nos anos 40 e 50, ambientalistas e comportamentalistas colocam em questão a incurabilidade das deficiências. Levantam a hipótese de que as deficiências poderiam ser decorrentes da falta de estimulação ou, ainda, o resultado de processos de aprendizagem inadequados. Desenvolve-se a compreensão de que todas as crianças poderiam aprender e ser educadas.
Nas décadas de 50 e 60, familiares de crianças ou jovens com deficiências fundam organizações, dando início a ações legais de reivindicação em favor da educação de seus filhos. As lideranças ligadas à educação especial da época começaram a defender o direito dos alunos de participar de ambientes regulares de ensino.
A partir dos anos 60 e 70 a Ciência introduziu uma mudança de perspectiva no conceito de deficiência, surgindo, em meados de 70 e 80, a filosofia de integração no âmbito da escola regular.
Na tentativa de superar esse histórico de exclusão e promover mudanças na educação, assegurando o acesso e a permanência de todos na escola, a Conferência Mundial de Educação para Todos, em Jomtien, 1990, lança um alerta aos países acerca dos preocupantes índices de escolarização.
Em 1994, a UNESCO realiza a Conferência Mundial de Necessidades Educativas Especiais: Acesso e Qualidade, propondo o aprofundamento das discussões e, a partir desta reflexão, o documento Declaração de Salamanca ressalta que as escolas regulares representam o meio mais eficaz de combate à discriminação e destaca que a escola deve atender a todos, indiscriminadamente.
Discussões de políticas educacionais focadas em uma educação de qualidade para todos passam a propor uma gestão escolar democrática e a implementação de ações voltadas
para a universalização da educação nos diferentes níveis.
Nesse período, marcado pelo crescimento do movimento mundial pela inclusão, o Brasil, paradoxalmente, publica um documento com base no modelo clínico de deficiência intitulado Política Nacional de Educação Especial, no qual o acesso de estudantes com deficiência no ensino regular foi condicionado à sua possibilidade de adaptação ao contexto e às condições existentes.
Esse documento suscitou amplo questionamento, justificado pelo alto índice de pessoas com deficiência fora da escola ou matriculadas em escolas e classes especiais.
O Brasil, finalmente, retoma o curso das decisões mundiais e passa a conceber um sistema educacional inclusivo, conforme prescrito pela Constituição Federal de 1988. A educação inclusiva passa a ser compreendida como um processo de reflexão e prática capaz de introduzir transformações estruturais no nível conceitual, politico e pedagógico da educação, com o potencial de legitimar o direito de todos a uma educação de qualidade.
A Convenção sobre os direitos das pessoas com deficiência outorgada pela ONU em 2006 é, então, ratificada pelo Brasil. Esse tratado internacional altera o conceito de deficiência que representava o paradigma integracionista. De acordo com a Convenção:
Pessoas com deficiência são aquelas que têm impedimentos de longo prazo de natureza física, mental intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas. (ONU Art. 1).
No paradigma inclusivo, cabe à sociedade promover as condições de acessibilidade necessárias a fim de possibilitar às pessoas com deficiência viverem de forma independente. Nesse contexto, a educação inclusiva torna-se um direito inquestionável e incondicional.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), preconiza uma sociedade mais justa em valores fundamentais como a igualdade de direitos e o combate a qualquer forma de discriminação.
Documentos internacionais importantes são produzidos sobre esse assunto: A Declaração Mundial de Educação para Todos (1990), a Declaração de Salamanca (1994) e a Convenção Interamericana para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Pessoa Portadora de Deficiência (1999).
Além de ser signatário destes documentos que preconizam os princípios de uma educação para todos, o Brasil também construiu várias outras diretrizes que orientam, recomendam e determinam como deve se processar a educação inclusiva nas escolas regulares públicas e privadas.
Em 2003/2004 é instituído no Brasil o Programa Educação Inclusiva: direito à diversidade, voltado para a formação de gestores e de educadores, dando início a uma nova política de educação especial enquanto modalidade transversal da educação infantil à educação superior. Isso representa uma mudança efetiva no conceito educacional para pessoas com deficiência.
Na educação inclusiva todos os alunos com e sem deficiência têm a oportunidade de conviver e aprender juntos, reproduzindo o que Mantoan denominou “cidadania global”, “plena”, que reconhece e valoriza as diferenças.
A Educação Inclusiva, portanto, resulta de extensas discussões ocorridas no mundo e no Brasil, sustentadas por ideais democráticos de igualdade, equidade e diversidade. É amparada por lei, e é obrigatória em todos os sistemas, níveis, etapas e modalidades de ensino do Brasil, que assumiu um compromisso público nacional e internacional de promover a inclusão social e educacional.
O direito à Educação constitui um direito inato, absoluto e incondicional da pessoa com algum tipo de necessidade educacional e não pode ser cerceado em hipótese alguma. Seu acesso a uma instituição educacional é um direito indisponível e exigível, desse modo, as instituições de ensino têm o dever de acolhê-la.
Por outro lado, as pessoas não podem dispor de seus direitos, pois estes são intransferíveis e irrenunciáveis. Não são fruto de mera aceitação, mas uma prerrogativa. Não podemos nos esvaziar de nossos direitos e não podemos privar alguém do seu lugar de sujeito. Direito tem titulação e não podemos deslegitimar o direito do outro. Mesmo encontrando-se em reclusão prisional, em tratamento domiciliar ou hospitalar, o direito da pessoa à educação é inviolável.
Assim sendo, ao fim de extensas e profundas reflexões, concluiu-se que a melhor resposta para os alunoscom ou sem deficiência é uma educação que respeite as características individuais, que proporcione alternativas pedagógicas que atendam às necessidades educacionais específicas de cada estudante, num ambiente inclusivo e acolhedor, onde todos, independentemente de quaisquer aspectos culturais ou características pessoais, possam conviver em segurança e aprender com as diferenças.
“Não há revelação mais veemente da alma de uma sociedade do que a forma pela qual ela trata suas crianças.”
Mandela (1918 – 2013)